Que o arroz e o feijão são a base da cultura alimentar brasileira é de conhecimento universal. O que nem sempre se sabe é a história desses dois elementos e como tal combinação passou a ser marca da nossa tradição gastronômica.
Segundo pesquisadores, o feijão está entre os alimentos mais antigos da história da humanidade. Achados de cerca de 10.000 a.C. contam de feijões cultivados no sítio arqueológico de Guitarrero, no Peru, reforçando indícios de sua origem na América do Sul, sendo disseminado, posteriormente, para o restante do mundo (1).
Cascudo (2005)(2), revela que no Brasil, “por ser de cultura facílima e cômoda, o feijão parece ter nascido para as tarefas femininas, brotando ao redor das casas (...) fixando o indígena nas labutas diárias ao colonizador e sem tempo útil para as colheitas distantes de outras plantas de sua tradicional ementa”.
Tanto a cultura do feijão quanto a da mandioca (daí a mistura do feijão com a farinha de mandioca) tiveram a função de retardar e, posteriormente, quase anular o nomadismo cíclico dos ameríndios. “O feijoal pertence à classe das plantas que acompanha o deslocamento do homem. E mais, especificamente, da família, porque constitui labor das mulheres o plantar e o colher ” (2).
Além dos indígenas, também os escravos africanos desenvolveram a cultura da leguminosa em solo brasileiro _ “o feijão apareceu aos olhos da cunhã, cozinheira e amásia o reforço mais imediato para completar a refeição. Os filhos foram logo depois da desmama habituados ao caldo de feijão e a mastigá-lo com qualquer carne, na forma de cozido que o português amava repetir no Brasil. Os primeiros brasileiros não dispensaram o prato nacional por excelência”, comenta Cascudo (2005)(2), numa boa síntese da popularização do que viria a ser a feijoada.
Os feijões mais populares no Brasil são do gênero Phaseolus, mas foi contribuição dos africanos a utilização do feijão-fradinho (gênero Vigna) no preparo do famoso acarajé. Não é acaso que esta região brasileira (Bahia) com a maior concentração de escravos africanos e seus descendentes exiba o bolinho de feijão como protagonista à mesa (1).
Tendo sua origem influência indígena e/ou africana, o feijão no Brasil passou a ser a refeição principal, o sustento e a força promotora de energia para os bandeirantes ou tropeiros. Em suas expedições, “o feijão ficava para as horas de pouso, armado o acampamento, esperando a fervura das panelas de barro ou de ferro, erguidas nas trempes, à luz das fogueiras vigilantes” (2).
O arroz, por sua vez, tem suas origens no sudeste asiático, mais especificamente nas províncias de Bengala, Assam e Mianmar. Registros antigos sobre a cultura do cereal são descritos na literatura chinesa há cerca de 5.000 anos (3).
De cultivo muito antigo também no Japão, Filipinas, e na Pérsia, o arroz não era conhecido nos países do Mediterrâneo até que os árabes passaram a cultivá-lo na foz do Rio Nilo. Foram eles os responsáveis pela introdução do arroz na cultura ocidental, iniciando-se seu plantio principalmente pela Espanha, que se encarregou de disseminar a iguaria pelas Américas (3).
No Brasil, apesar dos registros de cultivos de algumas variedades selvagens do cereal, não há indícios de que estes faziam parte do costume alimentar dos nativos. Assim, a cultura do arroz se espalhou no Brasil por influência portuguesa. “O rei D. João III mandava dar aos jesuítas, que vieram catequizar, um tanto de mandioca e arroz e um cruzado cada mês” (2,3).
Diferentemente do feijão no Brasil colônia, o arroz “não foi comida de escravos nem farnel de viajantes. Sozinho não fartava ninguém, como a farinha seca ou o milho cozido. A cultura não era fácil. Os plantios nos alagados exigia atenções e cautelas”. Seu consumo, entretanto, passou a ser popularizado em meados do século XVIII, quando a coroa portuguesa autorizou o estabelecimento da primeira fábrica de beneficiamento do grão no Rio de Janeiro. A inclusão do arroz no fornecimento da alimentação regular do exército na regência de D. João VI favorece o seu incremento na cultura alimentar tupiniquim (2).
A literatura não registra ao certo quando se inicia a combinação intuitiva entre o arroz e o feijão entre os brasileiros. Há apenas afirmações desta mistura ser um prato popular no Ceará: o baião de dois, registro esse feito em 1954 (2).
Com diferentes tipos de temperos e formas de preparo, o casamento entre o arroz e o feijão não atende apenas ao paladar tipicamente brasileiro, mas também às nossas demandas nutricionais. Juntos, o cereal e a leguminosa apresentam a perfeita combinação de aminoácidos essenciais. A lisina, deficiente no arroz está presente no feijão e a metionina, em baixas concentrações no feijão, é suprida pela presente no arroz. Enquanto o cereal é apontado como um alimento de alto índice glicêmico, a leguminosa, com suas altas concentrações de fibras, trata de contribuir para a redução deste índice na mistura.
A contribuição desses alimentos para o equilíbrio alimentar é muito marcante em minha trajetória acadêmica. Recordo-me bem de um trabalho científico, com o qual tive a oportunidade de contribuir na graduação, tornando-se inclusive tema do meu trabalho de conclusão de curso, em que avaliamos o desenvolvimento infantil de amostra representativa de uma população residente na zona rural de Minas Gerais. Após avaliarmos o consumo alimentar, antropometria e analisarmos as amostras de sangue das crianças, qual não foi a nossa surpresa ao nos depararmos com resultados muito melhores em relação ao esperado. Apesar do baixo consumo de proteína animal pela população, o que já era esperado pela situação econômica do público em questão, a presença robusta do arroz com feijão na dieta regular garantiu o desenvolvimento estatural adequado, bem como índices relativamente bons de ferro, zinco e cobre séricos nessas crianças. Foram resultados surpreendentes.
Constituindo-se a combinação de alimentos mais democrática da nossa história, com presença garantida nos pratos de ricos e pobres, o arroz com o feijão vem perdendo espaço na mesa dos brasileiros ao longo das décadas. Dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam uma redução em 23% na participação do arroz e de 30% do feijão nas casas dos brasileiros entre 1974/1975 e 2002/2003 (4). Já entre os períodos de 2002-2003 e 2008-2009 esta redução foi de 40,5% para o arroz e de 26,4% para o feijão (5).
A globalização, com sua consequente perda das tradições culinárias, associada ao hábito cada vez mais frequente de fazer das refeições fora de casa contribui sobremaneira para a ausência da participação do arroz com feijão na alimentação regular da nossa população. Os efeitos disso são expostos por trabalhos científicos revelando que a sua não escolha parece estar associada a práticas alimentares menos saudáveis e risco aumentado de sobrepeso/obesidade (6,7).
O terrorismo nutricional, ou “nutricionismo”, termo cunhado pelo pesquisador australiano Gyrogy Scrinis, que se refere ao ato de reduzir o alimento a nutrientes (ex.: arroz = carboidratos) também contribui para o nosso distanciamento da dupla, distorcendo a apreciação da qualidade dos alimentos sob a ótica do cientificismo exacerbado (8).
Desconsiderar toda a representação simbólica e sociocultural do arroz e o feijão e reduzi-los a grupos de macronutrientes significa muito mais que uma mudança em nosso padrão alimentar. Simboliza o desapego às nossas raízes, à importância da nossa historicidade e singularidade enquanto povo. Uma árvore sem raízes não pode ser uma árvore, não pode se erguer, exibindo toda a sua exuberância. Mais do que a força da nossa biologia, a cultura do arroz com feijão representa a força da nossa identidade.
Que possamos, enquanto profissionais de saúde e enquanto profissionais da nutrição, trabalhar no sentido de aproximar as pessoas da comida, parte essencial da nossa história. Que possamos atuar na perspectiva de garantir que as pessoas, mais do que se alimentar de maneira saudável, possam se relacionar com os alimentos de maneira equilibrada e, porque não, comendo arroz com feijão diariamente. Que possamos compreender que nossa força e saúde vão além do sentido biológico e que elas podem ser restabelecidas no percurso do resgate às nossas origens alimentares.
Referências:
Fernandes C. Viagem gastronômica através do Brasil. 6 ed. São Paulo: Senac; 2000.
Cascudo, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 4 ed. São Paulo: Global editora; 2005.
Bottini RL. Arroz: história, variedades, receitas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamentos familiares, 2002-2003: aquisição alimentar domiciliar per capita, Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: IBGE; 2004
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamentos familiares, 2008-2009: despesas, rendimentos e condições de vida. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.
Rodrigues AGM, Proença RPC, Calvo MCM, et al. Perfil da escolha alimentar de arroz e feijão na alimentação fora de casa em restaurante de bufê por peso. Ciênc. saúde coletiva. 2013; 18(2): 335-346.
Brasil. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília-DF: MS; 2014.
Scrinis G. Nutritionism: The Science and Politics of Dietary Advice. Columbia University Press. 368p; 2013.
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