Se há um efeito evidente que a pandemia de COVID-19 nos trouxe ao longo de 2020/21 foi a alteração nos modos de comer.
Estivemos, por longos meses, privados das nossas atividades habituais, das práticas de exercício e lazer ao ar livre, e também das interações sociais. Novos modos domésticos de trabalho, estudo e relacionamentos foram criados e uma rotina dentro da falta de rotina precisou ser estabelecida. Neste contexto, a comida passou a ter papel central como fonte de prazer.
O acúmulo de atividades, somado ao cenário caótico de perdas de entes queridos para o vírus, o medo de uma infecção iminente e o impacto da má condução governamental da pandemia na nossa economia configuram-se como causas importantes de estresse e sofrimento, favorecendo assim um aumento do comer desordenado.
Desde que os conhecimentos sobre comportamento alimentar passaram a ser amplamente difundidos, a terminologia “comer emocional” tornou-se popular. Entretanto, convém compreendermos melhor sua origem e conceito.
Por definição, comer emocional é a tendência a comer excessivamente em resposta a emoções negativas, como por exemplo ansiedade ou irritabilidade (van Strien & Ouwens, 2007). Tal denominação deriva da psicossomática, partindo-se do pressuposto de que comedores emocionais são pouco hábeis na diferenciação entre os sinais físicos da fome e os sintomas fisiológicos desencadeados pelas emoções (Adriaanse et al, 2011). Em outras palavras, é que ouvimos dos nossos pacientes e leigos sobre “é a ansiedade que me engorda”.
Pesquisadores desenvolveram algumas escalas com o objetivo de se avaliar a presença e a intensidade do comer emocional, a saber: Emotional Eating Scale (Arnow, Kenardy, & Agras, 1995), Emotional Overeating Questionnaire (Masheb & Grilo, 2006) e a Emotional Eating subscale of the Dutch Eating Behaviour Questionnaire (van Strien, 2005). Indivíduos com pontuações altas nessas escalas têm risco aumentado de desenvolvimento de sobrepeso, obesidade e maiores chances para o desenvolvimento de transtornos alimentares.
A literatura científica descreve também alguns fatores que contribuem para a presença do comer emocional, dentre eles a Alexitimia, que é a dificuldade de identificar, nomear sentimentos e descrevê-los para as outras pessoas; a baixa consciência interoceptiva, que a incapacidade das pessoas em perceber e atender os sinais internos e as necessidades do corpo e, por último, a prática de dietas restritivas (van Strien, 2018).
O estresse ou emoções negativas podem desinibir ou liberar ou autocontrole das pessoas que se privam na alimentação. A restrição calórica em si já contribui para uma elevação dos níveis de cortisol (hormônio do estresse), visto que o corpo não consegue distinguir uma dieta de uma verdadeira escassez alimentar e age como se estivesse no modo de inanição: redução da taxa metabólica basal (anabolismo) e aumento da fome e apetite.
O resultado é que pessoas que adotam regularmente a prática de dietas vivem intensas sensações de privação (física e psíquica), o que as torna muito mais susceptíveis a episódios de exageros. Isso é particularmente intensificado em condições de intenso estresse como na pandemia. Sendo assim, a prática regular de dieta é considerada um fator de risco para um aumento na tendência do comer emocional (van Strien, 2018).
Diante de todos esses desafios que se apresentam, em que questões contemporâneas relativas à cultura da dieta e da pressão pelo corpo magro associado à saúde, a pressa e pressão pela produtividade e retorno financeiro, questões como o desenvolvimento de habilidades socioemocionais são deixadas de lado, não sendo priorizadas para que se desenvolva recursos internos para lidar com o comer emocional.
A pandemia trouxe à tona importantes reflexões como a necessidade do cultivo da saúde mental, mas ainda infelizmente associadas ao consumo de produtos de skincare e serviços com promessas agressivas/atraentes e não como práticas individuais e de cultivo diário, como por exemplo práticas de consciência corporal e atenção plena.
O cuidado com as emoções e o comprometimento com as práticas gentis de saúde, infelizmente ainda têm sido pouco valorizadas e por vezes até subestimadas por grande parte da população. Nosso papel enquanto profissionais da saúde, nesse sentido, é essencial. Tanto informando, incentivando, quando desmistificando modismos e promessas absurdas. Eu sei, é cansativo. Eu também me sinto e me senti esgotada muitas vezes nessa pandemia. Mas e se sucumbirmos ao desânimo, como será que as coisas caminharão? O meu convite é que descansemos, nos cuidemos e sigamos juntes em busca do verdadeiro cuidado integral.
Referências:
Adriaanse, M. A., de Ridder, D. T. D., & Evers, C. (2011). Emotional eating: Eating when emotional or emotional about eating? Psychology & Health, 26(1), 23–39. doi:10.1080/08870440903207627
Arnow, B., Kenardy, J., & Agras, W.S. (1995). The emotional eating scale: The development of a measure to assess coping with negative affect by eating. International Journal of Eating Disorders, 18, 79–90
Masheb, R.M., & Grilo, C.M. (2006). Emotional overeating and its associations with eating disorder psychopathology among overweight patients with binge eating disorder. International Journal of Eating Disorders, 39, 141–146.
van Strien, T. (2005). Handleiding Nederlandse Vragenlijst voor Eetgedrag [Manual Dutch Eating Behavior Questionnaire]. Amsterdam: Boom Test Publishers
van Strien, T. (2018). Causes of Emotional Eating and Matched Treatment of Obesity. Current Diabetes Reports (2018) 18: 35
van Strien, T., & Ouwens, M.A. (2007). Effects of distress, alexithymia and impulsivity on eating. Eating Behaviors, 8, 251–257.
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